Imigrantes italianos, pioneiros da exibição cinematográfica brasileira: Vittorio di Maio

Por Antonio Ricardo Soriano

Vittorio di Maio (1852 - 1926)

“Os primeiros filmes brasileiros exibidos, aqueles que marcaram o nascimento do nosso cinema foram, segundo pesquisas mais recentes, filmados e mostrados pela primeira vez ao público, pelo napolitano Vittorio di Maio. Até há pouco tempo atrás, essa primazia era dada aos irmãos Afonso e Paschoal Segreto, também napolitanos. De uma forma ou de outra, portanto, os nossos primeiros passos no cinema foram dados por italianos de origem e brasileiros de adoção. - Carlos Augusto Brandão (crítico de cinema)



Vittorio Di Maio nasceu, em 14 de abril de 1852, na cidade italiana de Nápoles, vindo para o Brasil integrar-se, por toda a vida, às atividades cinematográficas e aos espetáculos teatrais e de variedades.

1896 - Primeira exibição cinematográfica do país
Não existem dados precisos de como foi a sua vinda para o Brasil, mas é incontestável que Di Maio seja o pioneiro do cinema exibidor no Brasil, com o seu Omniógrapho, instalado a 8 de julho de 1896, às 2 horas da tarde, na Rua do Ouvidor, nº 57, no Rio de Janeiro. O Omniógrafo, na verdade, era o Cinematógrafo (máquina de filmar e projetor de cinema), invenção dos irmãos Lumière. O acontecimento foi noticiado da seguinte maneira: "Omniógrafo - Com esse nome tão hibridamente composto, inaugurou-se ontem às duas horas da tarde, em uma sala à Rua do Ouvidor, um aparelho que projeta sobre uma tela colocada ao fundo da sala diversos espetáculos e cenas animadas por meio de uma série enorme de fotografias."
O reconhecimento desse pioneirismo lhe foi atribuído em 1986, por várias entidades como a Embrafilme, a Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro, a Fundação Casa de Rui Barbosa, a Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e o Centro de Pesquisadores do Cinema Brasileiro, com a realização de um seminário e um cartão-postal comemorativo dos 90 anos da primeira exibição de cinema no Brasil.

1897 - Primeiras filmagens no Brasil
Di Maio, também é reconhecido como o realizador das primeiras “vistas” ou filmagens produzidas no país, através de um Cinetógrafo do inventor Thomas Alva Edison, no dia 1º de maio de 1897. Retificando-se uma primazia atribuída ao italiano Afonso Segreto. A exibição destas “vistas” aconteceu em 6 de maio, no Teatro-Cassino Fluminense, em Petrópolis (RJ).

Pelo que hoje se recuperou da memória da filmografia brasileira, na pesquisa patrocinada pela Cinemateca Brasileira, dele seriam "Bailado de Crianças no Colégio, no Andaraí" e "Chegada do Trem em Petrópolis". Embora sustentasse, até o fim de sua vida, ter sido o primeiro a filmar no Brasil, Di Maio jamais exibiu novamente os seus filmes, nem explicou o seu destino.

Nesta época a exibição de filmes era esporádica e ambulante, em lugares públicos como cafés, quermesses, salões, circos e parques de diversões. A partir de 1897, várias localidades brasileiras tiveram o fascínio de descobrir a novidade das imagens em movimento dos vários projetores inventados.
Em maio de 1899, Di Maio instalou um projetor americano Biograph em São Paulo, no Teatro Eldorado Paulista. Com o sócio Leopoldo Perroscino, passaram a organizar as novas atrações oferecidas pela casa.

1899 - Primeiro “espaço” dedicado exclusivamente à exibição cinematográfica em São Paulo
Di Maio foi quem abriu o primeiro “espaço” dedicado exclusivamente à exibição cinematográfica em São Paulo (não confundir com um local ou prédio exclusivo, como o “Bijou Theatre”, que é considerado o primeiro cinema de São Paulo). O “Salão Nova York em São Paulo” teve sua inauguração solene em 20 de julho de 1899, na Rua 15 de Novembro, apresentando o Cinetógrafo Edison.

No ano seguinte, Di Maio inaugurou outra sala de exibição em São Paulo, na Rua do Rosário, nº 5, com o nome de “Salão Paris em São Paulo”, com um Cinematógrafo Lumière. A partir de 1900, o italiano reinaugurou por diversas vezes o “Salão Paris”, sempre com novidades de entretenimento, como “orquestra mecânica”, “museu de cera”, “cinefone (Kinetophone: versão do cinescópio com som gerado por um fonógrafo)", “cinematógrafo falante”, entre outras.

Neste período, a exibição cinematográfica era uma parte menor na programação de suas casas de espetáculo. Mesmo assim, graças ao dom empreendedor e sua paixão pela Sétima Arte, Di Maio abriu vários cinemas no Rio, São Paulo, Rio Grande do Sul, Bahia e, principalmente, no Ceará.
1907 seria o último ano da pioneira fase dos "projetores" itinerantes e, neste ano, “Victor Di Maio” foi à Fortaleza (Ceará), pela primeira vez, com a Empreza Camões & Di Maio, onde instalou um projetor no Teatro João Caetano e permaneceu na cidade até fevereiro de 1908, quando colocou à venda o projetor da Pathé Frères, para depois anunciar sua viagem a Europa.

1908 - Primeiro cinema de Fortaleza
Em abril de 1908, o "Jornal do Ceará" publicou uma carta que Di Maio enviou de Paris prometendo residir e instalar um cinema fixo em Fortaleza: "dever achar-se em breve nesta capital, onde pretendo fundar uma casa de diversões e recreio para as famílias". A promessa foi cumprida em 26 de agosto de 1908.

Di Maio inaugurou o primeiro cinema fixo em Fortaleza, o "Cinematographo Art-Nouveau", que posteriormente foi popularizado com os nomes de "Cinema Di Maio" e "Cinema Cearense". O Cinematographo Art-Nouveau manteve-se em pleno funcionamento até 1914, na Praça do Ferreira, sempre com grande número de frequentadores.

A personalidade de Di Maio é enaltecida. A imprensa refere-se a ele como “simpático Sr. Di Maio”, e a qualidade de sua programação cinematográfica é destacada, pois as fitas eram caprichosamente escolhidas por ele (“Tentadoras e empolgantes”).

Di Maio deixou Fortaleza no final de 1914, voltando quase doze anos depois. O relato publicado no "Correio do Ceará", edição de 13 de abril de 1926, revelou o regresso e a situação dramática em que se encontrava o empresário dos primeiros tempos do cinema:
"Ha cerca de um mez, encontra-se nesta capital o pobre velhinho Victor di Maio, em triste situação de pobreza e quasi cego. É um symbolo que lembra alguns momentos de delicia por que passou a nossa capital alguns annos passados. Victor di Maio foi o introductor do cinema no Ceará e já antes elle o fôra no próprio Rio, onde fez fortuna e amizades, que não duraram mais do que a sua riqueza, que o infortunio levaria imprevistamente. Hoje, cego, pobre e quasi sem amparo, os momentos de alegria que ao público já proporcionou autorizam-lhe a pedir proteção, para sua infelicidade. E assim é que, no Moderno, por estes dias, será levado esplendido "film" em benefício desta velhice desventurada, pela pobresa e mais ainda pela cegueira. O publico deve, pois, acorrer ao beneficio, para amparar um gesto de generosidade do empresario do Moderno e assistir ao mesmo tempo um "film" colossal de William Farnum." (Texto original, com o português local e de época).

O mesmo periódico, no sábado, 17 de abril, fez novos apelos para que a população prestigiasse a sessão especial no Cine-teatro Moderno, que exibiria o filme “O Seu Maior Sacrifício”. Apelos que ressaltavam a triste situação do pioneiro da exibição cinematográfica no Brasil.

Apenas quatro dias após a sessão em seu benefício, na quarta-feira, 21 de abril de 1926, uma triste notícia: morreu “Victor Di Maio”. E por estranha fatalidade, a morte ocorreu no salão do Café Art-Nouveau, o mesmo prédio onde havia instalado o primeiro cinema fixo de Fortaleza: o Cinematographo Art-Nouveau.

Referências:
Livro "Salões, Circos e Cinemas de São Paulo", de Vicente de Paula Araújo - Ed. Perspectiva - 1981.
Livro “Enciclopédia do cinema brasileiro” - Organizadores: Fernão Pessoa Ramos e Luiz Felipe A. de Miranda - Ed. Senac São Paulo - 2004.
Site do Instituto Histórico de Petrópolis (www.ihp.org.br).
Site da Cinemateca Brasileira (www.cinemateca.gov.br).

Próxima postagem:
Imigrantes italianos, pioneiros da exibição cinematográfica brasileira: Irmãos Paschoal, Afonso e Gaetano Segreto

Veja também neste blog:
As primeiras projeções na cidade de São Paulo
O cine Belém e os primórdios do cinema em São Paulo
Bijou Theatre: 1º local criado, exclusivamente, para exibições cinematográficas em São Paulo
Primeiras projeções da história do cinema
Grandes empresários da exibição cinematográfica: Francisco Serrador

Imigrantes italianos, pioneiros da exibição cinematográfica brasileira: Irmãos Paschoal, Afonso e Gaetano Segreto

Por Antonio Ricardo Soriano

Paschoal Segreto (Pascoale Segreto – 1868-1920)

Paschoal Segreto foi o primeiro grande empresário do entretenimento e o primeiro exibidor e produtor de filmes no Brasil.



Paschoal nasceu, em 22 de março de 1868, na cidade de San Martin di Cileno, na província italiana de Salerno, filho de Domenico e Concetta Segreto. Aos 15 anos, em 1883, decidiu imigrar para o Brasil, junto ao seu irmão Gaetano (dois anos mais velho), embarcando na 3ª classe do navio a vapor “Savoie” para o Rio de Janeiro. Lá, trabalharam vendendo bilhetes de loteria e jornais. Logo, por terem grande facilidade para os negócios, passaram a explorar as primeiras formas de divertimento na cidade, como jogos, apostas e loterias (consideradas contravenção), levando eles a algumas passagens pela Casa de Detenção. Quando estavam bem estabelecidos, trouxeram em 1896, o outro irmão Afonso Segreto para ajudar nos negócios.

Paschoal observou, no Rio de Janeiro, o surgimento de cabarés, cafés-concerto e salões, onde se ofereciam vários tipos de espetáculos de variedades e com diversos artistas. Junto, haviam sempre algumas novidades mecânicas, como o Fonógrafo e o Cinematógrafo. Com imensa vontade e criatividade em trabalhar no ramo das diversões, Paschoal fundou a primeira empresa de porte e de nome nacional do setor, a Empresa Paschoal Segreto.

Primeira sala a manter uma programação contínua de exibição cinematográfica no país
Observando o sucesso das exibições irregulares do Cinematógrafo na cidade, em 31 de julho de 1897, Paschoal e José Roberto Cunha Salles realizaram a inauguração solene da primeira sala a manter uma programação contínua de exibição cinematográfica, o Salão de Novidades Paris no Rio (Rua do Ouvidor, nº 141), com a impressionante presença de 1.572 pessoas. Ao lado de bonecos automáticos, caça-níqueis, bibelôs excêntricos, números de variedades e aparelhos de entretenimento científico, o “Salão Paris no Rio” exibia também o Cinematógrafo Lumière.

“Paris no Rio – Salão de Novidades – De Salles e Segreto – 141 Rua do Ouvidor – No dia primeiro foi inaugurado ao público esse luxuoso salão com a exibição de maravilhosos quadros de fotografias animadas, reproduzidas pela importante máquina Vitoscópio – Super – Lumière, a primeira até hoje vinda à América do Sul. Sessão todos os dias e todas as noites. Entrada 1$000.” – Cidade do Rio, 4 de agosto de 1897.

Com a repercussão da inauguração do “Salão”, que rendeu várias notas nos jornais e levou a formação de enormes filas nos dias de exibição, o então Presidente da República, Prudente de Moraes fez questão de comparecer com a família para conhecer a nova atração do italiano, em 17 de junho de 1898.

O sucesso do “Salão” se firma de tal modo que, para atender à crescente demanda de novos filmes, partiram emissários para os Estados Unidos e Europa a fim de adquirir novas ‘vistas’. Afonso Segreto, afirmou-se na função, além disso, aprendeu a usar novos equipamentos cinematográficos. A 19 de junho de 1898, Afonso regressou de uma de suas viagens co­merciais e trouxe consigo uma câmara de filmar. Ainda a bordo do paquete francês Brèsil, ele produziu algumas vistas da baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, sendo esta, uma das primeiras filmagens produzidas no Brasil.

Em 9 de setembro de 1897 foi desfeita a sociedade Segreto & Salles. Paschoal continuou com o “Salão”, tendo como novo sócio o irmão Gaetano. Um incêndio destruiu por completo o “Salão”, em agosto de 1898, assim como o resto, os dois outros andares onde os Segreto guardavam equipamentos e moravam. No entanto, o prédio estava no seguro e Paschoal logo reabriu o “Salão” no mesmo local, em 5 de janeiro de 1899.

No dia 23 de dezembro do mesmo ano, inaugurou o Parque Fluminense, com um cinematógrafo ao ar livre e uma pista de patinação no gelo. Depois, abriu o Coliseu Boliche, o Maison Moderne, o Moulin Rouge (que reformou em 1904) e o High Life Club (na Rua Santo Amaro, no bairro da Glória). Arrendou teatros, como o São José, o São Pedro e o Carlos Gomes. Em todas as casas da empresa, o cinema era a atração central, mas não exclusiva. Em outras cidades, como Niterói, São Paulo e Santos, também controlou várias casas de espetáculos e jogos.

Paschoal, também, foi o primeiro exibidor de fitas nacionais. Em relação às outras exibições cinematográficas que ocorriam irregularmente no Rio de Janeiro, por outros empresários, Paschoal passou a ter um diferencial em suas casas de espetáculos e variedades, onde o cinema era a principal atração, os “filmes locais” produzidos por seu irmão Afonso, ajudando a se consolidar como o primeiro grande empresário de entretenimento e responsável pela introdução do cinema no país, sendo cognominado pela imprensa como o “Ministro das Diversões”.

Em 1900, os irmãos Paschoal e Afonso, montaram um estúdio para a produção de filmagens de acontecimentos bem recentes e um laboratório próprio. Qualquer acontecimento (paradas militares, incêndios, manifestações, etc.) era projetado, dias depois, no “Salão Paris no Rio”. Até 1907, a Empresa se manteve como única exibidora e produtora de cinema no país.

A partir de 1908, com o surgimento e o aumento da concorrência, Paschoal passou a importar e produzir “filmes alegres”. Inaugurou o Pavilhão Internacional, na Avenida Central, atual Avenida Rio Branco, trazendo para junto do Cinematógrafo, a apresentação de artistas internacionais.

Com o surgimento da gigante “Companhia Cinematográfica Brasileira”, de Francisco Serrador, que foi se apossando do mercado cinematográfico paulista e depois do carioca, Paschoal se manteve no setor apenas como um pequeno exibidor, enquanto continuou empresariando entretenimentos variados.

Enriqueceu, trazendo para o teatro seus conceitos de entretenimento a preços populares. Sua contribuição para a formação de um teatro musical e cômico nacional, o Teatro de Revista, foi muito importante, tanto que Procópio Ferreira lhe chamou de “Papa do teatro brasileiro”.

Em 1919, trouxe para o centenário da cidade de Niterói, uma novidade do exterior, o Carrossel.
Morou com sua esposa Carmela no bairro carioca de Santa Teresa, com quem não teve filhos. Faleceu em 27 de fevereiro de 1920, devido agravamento de gangrena, decorrente da diabetes. Encontra-se sepultado no Cemitério São João Batista.

Afonso Segreto (Alfonso Segreto – 1875 - ?)

Por orientação de seu irmão Paschoal tornou-se o primeiro cineasta brasileiro, realizando, entre 1898 e 1901, cerca de 60 filmes, que constituem a maioria absoluta das primeiras filmagens produzidas no país.



Existem poucas informações sobre Afonso. Sabemos que, em 1896, foi trazido da Itália para o Rio de Janeiro, pelos seus irmãos Paschoal e *Gaetano, quando estes se consolidaram comercialmente no ramo dos jogos e diversões. Provavelmente, nasceu na mesma cidade dos irmãos, em San Martin di Cileno, na metade da década de 1870.

Primeiras filmagens no Brasil
No Rio de Janeiro, passou a trabalhar na Empresa Paschoal Segreto. Participou do lançamento do Salão de Novidades Paris no Rio. Em janeiro de 1898, viajou à Nova York, onde adquiriu novas fitas para a programação do “Salão” e, também, comprou e aprendeu a operar novos equipamentos de filmagem e projeção. Depois, em Paris, realizou um estágio na Pathé Films. Voltou para o Brasil e no dia de sua chegada, em 19 de junho de 1898, Afonso filmou, a bordo do navio francês Brèsil, a cidade do Rio de Janeiro em pleno amanhecer e, depois, as fortalezas e navios de guerra na baía de Guanabara, sendo estas, umas das primeiras filmagens ou “vistas” feitas no Brasil. Pesquisas apontaram o italiano Vittorio di Maio como o verdadeiro realizador das primeiras filmagens produzidas no país. Mesmo assim, o dia 19 de junho é considerado o Dia do Cinema Brasileiro.

Depois, Afonso seguiu filmando por muitos anos, no Rio, solenidades e acontecimentos políticos e sociais, como o terceiro aniversário da morte do Marechal Floriano Peixoto, o desembarque do Presidente Prudente de Morais e sua comitiva no Arsenal da Marinha e visitas de personalidades e autoridades de outros países, fazendo parte da política de boa vizinhança que o irmão Paschoal possuía com as elites do país.

Em 23 de fevereiro de 1899, Afonso chegou de Nova York com novos aparelhos de exibição cinematográfica (para substituir os equipamentos perdidos no incêndio do “Salão Paris no Rio”), sendo festivamente recebido por seu irmão Gaetano e pela diretoria do Círculo Operário Italiano, com fogueteiro, banda de música e um almoço especial. No mesmo ano, Afonso viajou com Gaetano até São Paulo, para uma reunião do Círculo Operário Italiano paulista, quando realizou a primeira filmagem na capital paulista, no dia 20 de setembro de 1899, aniversário da unificação da Itália. “Círculo Operário Italiano em São Paulo” é exibido, dias depois, no “Salão de Novidades Paris no Rio”.

Por causa de discussões e desacordos políticos com seu irmão Paschoal, devido a seus filmes feitos com bastante independência, Afonso foi afastado da Empresa Paschoal Segreto. Em 1902, a Empresa apresentou um único filme, “Vistas Nacionais” (com o reaproveitamento de filmagens de Afonso), paralisando suas atividades cinematográficas até 1907.

Depois de uma temporada em São Paulo, à frente de um ateliê fotográfico, Afonso retornou à Itália, onde morreu quase anonimamente.

* Gaetano Segreto continuou trabalhando com a distribuição de jornais e se envolveu cada vez mais com a colônia italiana no Rio de Janeiro, tornando-se membro e depois dirigente de diversas associações, como o Círculo Operário Italiano carioca. Tornou-se editor do “Il Bersagliere”, um jornal publicado no Rio, em Italiano. Casou-se, em 1896, com Elia Saccardi, que lhe deu dez filhos. Gaetano morreu na Itália, em 22 de junho de 1908, perto de sua cidade natal, onde foi enterrado, deixando nove filhos, que passaram a ser criados pelo irmão Paschoal.

Fontes de pesquisa:
Livro "Salões, Circos e Cinemas de São Paulo", de Vicente de Paula Araújo - Ed. Perspectiva - 1981.
Livro “Enciclopédia do cinema brasileiro” - Organizadores: Fernão Pessoa Ramos e Luiz Felipe A. de Miranda - Ed. Senac São Paulo - 2004.
Revista “Nossa História - Ano 2 - nº 13 - Novembro/2004” - Artigo “O ministro das Diversões”, de William Martins.
Site da Cinemateca Brasileira (www.cinemateca.gov.br).

Breve cronologia da história da exibição na cidade de São Paulo

Por Antonio Ricardo Soriano

ESTE TEXTO SERÁ PERIODICAMENTE ATUALIZADO.

07/08/1896
AS PRIMEIRAS PROJEÇÕES - Primeira exibição cinematográfica privada em São Paulo, com o aparelho "Cinématographe Lumière" (cinematógrafo) do fotógrafo Georges Jean Renouleau. Esta exibição inaugural, tem características que vão se manter nas exibições seguintes na cidade, ou seja, pessoas que têm um projetor e um pequeno estoque de filmes (exibidores ambulantes) fazendo apresentações esporádicas, normalmente em lugares públicos como cafés, quermesses ou em parques de diversões.

















08/08/1896
AS PRIMEIRAS PROJEÇÕES - Primeira exibição cinematográfica pública e paga em São Paulo, próxima à antiga catedral da Sé (que foi demolida), com o cinematógrafo de Renouleau.

20/07/1899
AS PRIMEIRAS PROJEÇÕES - O italiano Vittorio Di Maio abre, na Rua 15 de Novembro (na época, Rua do Rosário), o salão “Nova York em São Paulo”, apresentando o Cinetógrafo Edison. Foi o primeiro “espaço” dedicado exclusivamente à exibição cinematográfica em São Paulo (não confundir com um local ou prédio exclusivo, como o Bijou Theatre, que é considerado o primeiro cinema de São Paulo).

11/08/1900
AS PRIMEIRAS PROJEÇÕES - Vittorio Di Maio inaugura, também, na Rua 15 de Novembro, a casa de diversões e novidades "Paris em São Paulo", apresentando um cinematógrafo.

1905
AS PRIMEIRAS EXIBIÇÕES NO INTERIOR PAULISTA - Francisco Serrador, prevendo que o cinema seria a maior diversão do século e uma excelente atividade lucrativa, compra projetores e filmes da Pathé francesa, transformando o cinematógrafo em uma atividade de exibição ambulante, o Cinematógrafo Richebourg. Foi assim que Amparo, Campinas, Itu, Mococa, Ribeirão Preto, São Carlos, e tantas outras cidades paulistas, conheceram o cinema.

16/11/1907
O 1º CINEMA - Francisco Serrador inaugura o Bijou Theatre, na Rua de São João, sendo o primeiro local da cidade de São Paulo criado, exclusivamente, para exibições cinematográficas.















1908
A CENSURA - Uma das primeiras manifestações da censura cinematográfica no Brasil coincidiu com o início das atividades do grande empresário Francisco Serrador no ramo da exibição em São Paulo. Serrador, que seria posteriormente proprietário de centenas de salas nas principais cidades do país, havia alugado um salão dos padres salesianos quando surgiu uma fita considerada imprópria, pela ótica dos padres. Ele então mostrou que o filme poderia ser cortado sem a necessidade de suspender toda sua apresentação. O Grêmio São Paulo foi a primeira sala exibidora de cinema a contar com censura prévia dos filmes apresentados.

1908
O FILME CANTANTE - Produzidos entre 1908 e 1911, eles se caracterizam pela utilização de uma forma peculiar de sonorização: os cantores, posicionados atrás da tela, entoavam ao vivo as canções que faziam parte da trilha dos filmes, isto é, acompanhavam com a voz a movimentação das imagens. Segundo os historiadores, Francisco Serrador, exibidor e produtor espanhol, teria produzido o primeiro, em 1908, protagonizado por Cândido das Neves, cantor e palhaço do Circo Spinelli.

1908
O CINEJORNAL - Francisco Serrador passa a produzir as suas próprias películas, para serem exibidas em suas salas de exibição. Conhece Alberto Botelho, e os dois realizam uma série de cinejornais, registrando os eventos mais importantes da cidade.

1911
O CIRCUITO SERRADOR - Francisco Serrador cria a Cia. Cinematográfica Brasileira, desta vez, uma sociedade anônima. O restante das ações pertencia a vários empresários de outros segmentos da sociedade, que injetaram dinheiro para que a empresa pudesse crescer ainda mais. Com isso, Serrador passou a dominar o mercado exibidor paulista.

29/12/1921
O 1º CINE REPÚBLICA - Francisco Serrador inaugura o primeiro cine República. Ele surge como o melhor, mais moderno e mais luxuoso cinema do Brasil e logo se transforma no ponto de encontro da elite da sociedade paulistana. O cinema deixava de ser diversão popular para ser o principal meio de diversão de todas as camadas da sociedade, desbancando os circos, cafés-concerto e teatros.

1923
O CARTAZ DE CINEMA - É impresso o primeiro cartaz promocional do cinema brasileiro para o filme "João da Mata", de Amilar Alves, incluindo textos (críticas, sinopse e dados da produção) e imagens do filme (fotos).

1929
OS PRIMÓRDIOS DA EXIBIÇÃO SONORA - A fábrica de discos Parlophon consegue introduzir o som do filme "Acabaram-se os otários" (considerado o primeiro filme sonoro brasileiro) em disco, sendo depois sincronizado com a projeção, processo que se transforma num sucesso em São Paulo. Durou pouco este processo, pois a sincronização ficava impossibilitada quando havia o desgaste natural das fitas.

23/09/1929
O CANTOR DE JAZZ - Estreia do primeiro filme sonoro da história do cinema, O Cantor de Jazz, no antigo cine República.

1938
A DUBLAGEM - Exibição do primeiro filme dublado, o desenho animado "Branca de Neve e os Sete Anões", de Walt Disney (1937). A dublagem teve as canções adaptadas para o português pelo compositor João de Barro, o Braguinha. A voz de Branca de Neve ficou a cargo de Dalva de Oliveira, a "rainha do rádio".

1950
A DÉCADA DE OURO - Inicia-se o período de ouro da exibição cinematográfica em São Paulo. Inauguram-se grandes e luxuosos cinemas, como o Universo, com mais de quatro mil lugares e o Marrocos, apontado como o cinema mais luxuoso da América do Sul.

17/04/1952
O NOVO CINE REPÚBLICA - O exibidor Paulo Sá Pinto, que já havia construído dois grandes cinemas na capital paulista, o Ritz (1943) e o Marabá (1944), comprou o prédio onde funcionava o antigo cine República, para reformá-lo e reinaugurá-lo com o filme "A Vida Secreta de Nora", com Loreta Young e Joseph Cotten. Neste cinema, Paulo Sá Pinto lança grandes novidades da tecnologia da exibição.

24/10/1953
A 3ª DIMENSÃO - Paulo Sá Pinto inaugura o processo de exibição em 3ª dimensão no cine República, com o filme "Veio do Espaço". No dia seguinte, no jornal O Estado de S.Paulo, o cine Opera anunciava para breve, a exibição em 3ª Dimensão do filme "Ticonderoga - O Forte da Vingança", e no mesmo programa, "Bichos Papões", uma comédia com os Três Patetas, também em 3D.























1954
OS FESTIVAIS - O I Festival Internacional de Cinema do Brasil teve uma única edição e foi nos meses de janeiro e fevereiro durante as festividades do IV Centenário da Cidade de São Paulo. O cine Marrocos foi palco da mostra.

09/02/1954
O CINEMASCOPE - Paulo Sá Pinto faz a primeira demonstração profissional do CinemaScope no cine República. Exibidores, distribuidores, produtores, diretores, artistas e técnicos ligados ao cinema, bem como cronistas e críticos, radialistas e grande número de convidados pela direção da Fox Film Corporation e Empresa Cinematográfica Sul Ltda., ali compareceram para conferir a grande novidade. A primeira exibição pública foi em 05 de abril de 1954, no cine República, com o filme "O Manto Sagrado".



















07/07/1955
A MAIOR TELA DO MUNDO - Paulo Sá Pinto inaugura a maior tela do mundo (250 m2) no cine República para exibição de filmes em CinemaScope. O primeiro filme exibido na supertela foi "Átila, o Rei dos Hunos", com Jeff Chandler.

14/08/1959
O CINERAMA - Paulo Sá Pinto (sim, ele de novo!) anuncia, em abril de 1959, mais uma inovação. Em uma entrevista, declara que, em Paris, havia assinado um contrato para exibir o Cinerama no cine Comodoro e que seria apresentado aos paulistanos brevemente, tudo dependendo da chegada das máquinas, pois o Comodoro já estava praticamente pronto. O cine Comodoro Cinerama, na Av. São João, 1462, foi inaugurado, às 14 horas, com o filme "Isto é Cinerama". São Paulo foi a única cidade brasileira que realmente assistiu ao Cinerama legítimo, com três projetores trabalhando simultaneamente.

1977
OS FESTIVAIS - O crítico Leon Cakoff criou a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que se firmou como o mais importante festival internacional de cinema do país.

Eu poderia citar nesta cronologia a inauguração de diversos cinemas importantes em São Paulo, mas ela ficaria imensa. É mais fácil consultá-los no Banco de Dados do blog. Se você tiver alguma informação ou correção importante, me informe pelo e-mail: aricardorock@hotmail.com. Obrigado.

14/12/2012
EXIBIÇÃO EM 48 FRAMES - Inovação na exibição do filme "O Hobbit - Uma Jornada inesperada"! Exibição digital em 48 quadros por segundo (o dobro das projeções tradicionais) nos cinemas Cinépolis Shopping JK Iguatemi (IMAX), UCI Anália Franco, UCI Jardim Sul e Kinoplex Vila Olímpia. Trata-se de uma projeção em que o fluxo de imagens é mais rápido e mais próximo do que o olho humano assimila, tornando o filme ainda mais realista devido ao fato da imagem estar mais fragmentada, ou seja, ter mais detalhes por quadrado, o que é bastante impactante para o espectador.





















Fontes de pesquisa:
Livro "Salões, Circos e Cinemas de São Paulo", de Vicente de Paula Araújo - Ed. Perspectiva - 1981.
Livro “Enciclopédia do cinema brasileiro” - Organizadores: Fernão Pessoa Ramos e Luiz Felipe A. de Miranda - Ed. Senac São Paulo - 2004.
Sites
http://www.centrocultural.sp.gov.br/cadernos/lightbox/lightbox/pdfs/Exibi%E7%E3o.pdf
http://www.arquiamigos.org.br/bases/cine3p/historico/00003.pdf
Instituto Histórico de Petrópolis (www.ihp.org.br)
Cinemateca Brasileira (www.cinemateca.gov.br)

Cinemateca Brasileira

História - A Cinemateca Brasileira surgiu a partir da criação do Clube de Cinema de São Paulo, em 1940. Em 1984, a Cinemateca foi incorporada ao governo federal como um órgão do então Ministério de Educação e Cultura (MEC) e hoje está ligada à Secretaria do Audiovisual. A mudança da sede para o espaço do antigo Matadouro Municipal, cedido pela Prefeitura da cidade, ocorreu a partir de 1992. Seus edifícios históricos, inaugurados no século XIX, foram tombados pelo Condephaat – Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo, e restaurados pela entidade.

Sede da Cinemateca Brasileira na Vila Clementino.

















Cinemateca no bairro da Lapa - Parte do acervo da Cinemateca terá um novo endereço, na Rua Othão, nº 174, esquina com a Rua Mergenthaler, no bairro da Lapa, em um prédio de propriedade da União, que está sendo todo reformado.

Novo prédio da Cinemateca no bairro da Lapa onde ficará parte do seu acervo. 

Imagens em movimento - A Cinemateca Brasileira possui o maior acervo de imagens em movimento da América Latina. Ele é formado por cerca de 200 mil rolos de filmes, que correspondem a 30 mil títulos. São obras de ficção, documentários, cinejornais, filmes publicitários e registros familiares, nacionais e estrangeiros, produzidos desde 1895.

Centro de Documentação e Pesquisa - O Centro de Documentação e Pesquisa da Cinemateca Brasileira, cujas instalações permanentes foram inauguradas em setembro de 2002, concentra os setores:

Biblioteca Paulo Emilio Salles Gomes - Possui mais de 5.330 livros. Destaca-se a coleção de 2.960 roteiros e uma preciosa coleção de cartazes de filmes e de eventos cinematográficos, hoje em torno de 8.100 títulos, compreendendo 2.720 cartazes de filmes brasileiros e de eventos. Os periódicos brasileiros e estrangeiros, que totalizam 1.750 títulos (dentro de um conjunto bastante fragmentado) reúnem, no entanto, coleções bastante significativas das revistas Cinearte (1926-1942), A Scena Muda (1921-1955), Filmelandia (1954-1963), Cinelandia (1952-1967), Filme Cultura (1966-1988), Guia de Filmes (1967-1987), Cine Imaginário (1985-1990), Tabu (1986-1990), Cinemin (1982-1993), Cinemais (1996-2004), etc.

Arquivos Especiais - Agrega tanto o Arquivo Histórico da Cinemateca Brasileira quanto arquivos pessoais de críticos e cineastas brasileiros como Glauber Rocha, Francisco Luiz de Almeida Salles, Pedro Lima, Plinio Garcia Sanchez, Jean-Claude Bernardet, Geraldo e Renato Santos Pereira e pequenas outras coleções.

Laboratório Fotográfico - Cabe a ele, o processamento técnico e a preservação de 32.000 fotos de filmes estrangeiros, 26.000 de filmes brasileiros, 22.000 de eventos e personalidades, 42.000 negativos e 500 placas de vidro, lanternas e esterografias. Uma Base de Dados, com 5.000 registros, permite a consulta por meio de índices de títulos, diretores, locais de produção e personalidades.

Salas de exibição - A primeira Sala Cinemateca foi inaugurada em 10 de março de 1989, no espaço onde funcionava o cine Fiametta, na Rua Fradique Coutinho, em Pinheiros. O filme em cartaz era "A Paixão de Joana D’Arc", de Carl Dreyer. Durante oito anos, mais de 200 mil pessoas assistiram a retrospectivas variadas promovidas pela Sociedade Amigos da Cinemateca, muitas vezes formadas por obras inéditas.Atualmente, existem duas salas de exibição da Cinemateca:

A Sala Cinemateca/Petrobras foi inaugurada em 5 de novembro de 1997, construída em um dos Galpões do antigo Matadouro, sede oficial da instituição, com capacidade para 110 espectadores. Conta com equipamentos para projeção fílmica nas bitolas 16 mm e 35 mm, do formato silencioso (1:1,33) ao Cinemascope (1:2,35) passando pelos formatos academia (1:1,37) e panorâmicos (1:1,66 e 1:1,85) e todas as velocidades de projeção, com reprodução de som Dolby Digital e projetor eletrônico para exibições em vídeo e recursos multimídia. No final de 2005, passou por uma reforma e foi reaberta em março de 2006 com a qualidade de projeção e reprodução sonora dentro das normas técnicas internacionais.
A Sala Cinemateca/BNDES, com 205 lugares e 4 espaços para cadeirantes, foi inaugurada oficialmente em 12 de novembro de 2007, ocupando parte do Galpão III do antigo Matadouro. O filme exibido foi "Eles não usam black-tie", de Leon Hirszman, cuja restauração foi coordenada tecnicamente pela Cinemateca Brasileira. Além de obedecer às leis de proteção do patrimônio histórico e arquitetônico, o projeto da nova sala se baseou na norma técnica NBR12237/NB1186: Projetos e instalações de salas de projeção cinematográfica, que determina parâmetros específicos para a qualidade da imagem, a qualidade do som e o conforto do espectador, tanto em relação ao desempenho dos equipamentos como também da própria arquitetura da sala. Esta nova sala está apta a projetar películas cinematográficas nas bitolas 35 mm e 16 mm, do formato silencioso – 1:1,33 – ao Cinemascope (1:2,35) passando pelos formatos academia (1:1,37) e panorâmicos (1:1,66 e 1:1,85) – e todas as velocidades de projeção. A reprodução sonora pode ser do tipo analógica ou Dolby Digital. Para a projeção digital utilizamos um projetor de alta definição Barco 2K.
As duas salas oferecem características que possibilitam a exibição da grande variedade de material contida no acervo da Cinemateca Brasileira e de outras instituições preservadoras de memória audiovisual, nacionais e internacionais, assim como a exibição de filmes com produção atual em película e/ou mídias analógicas e digitais.

Restauração - Desde 1978, a Cinemateca Brasileira possui um Laboratório de Restauração devidamente equipado que foi reconhecido pela FIAF - Fédération Internationale des Archives du Film, como um exemplo para as cinematecas latino-americanas. Entre as suas atividades permanentes está a restauração de filmes do acervo em estado de deterioração, a transferência de materiais em suporte de nitrato de celulose para suporte de segurança (poliéster) e a confecção de cópias (matrizes ou reproduções para empréstimo).
Cinemateca Brasileira
Endereço: Largo Senador Raul Cardoso, 207 - Vila Clementino
São Paulo - SP - Tel.: (11) 3512-6111

Textos extraídos do site oficial da Cinemateca Brasileira, onde podemos encontrar toda a programação de eventos e informações mais detalhadas.

O cinema silencioso

Por Sylvio Luiz Panza (Escritor)
Na época do cinema mudo e preto e branco os diretores e atores, assim como todos os envolvidos na produção de um filme, tinham que superar estas deficiências técnicas para conseguir transmitir emoções ao público.
Sem tecnologia para captar as vozes dos atores e os sons do ambiente, muito menos sincronizar uma dublagem, as filmagens recorriam ao uso de legendas que se tornaram marca registrada daquela época. Algumas salas colocavam um pianista para, conforme a sua habilidade, sincronizar melodias e sons ao andamento da história.
As maquiagens e figurinos também tinham que considerar os tons de cinza, o preto e o branco no resultado final das filmagens. Já os atores precisavam atuar como mímicos, o que tornava ainda mais complexa a arte de contracenar. As sequências dos roteiros, por sua vez, tinham a missão de cadenciar o ritmo da história para não deixá-la monótona e manter o interesse da plateia.
É verdade que exisitiam, como era de se esperar com tantas dificuldades, filmes de péssima qualidade também naquela época. Mas grandes obras primas foram produzidas e são referências até os dias de hoje.
Os grandes atores e filmes desta época do cinema em preto e branco podem nos inspirar, em qualquer área de atuação, na tentativa de aproveitarmos toda a tecnologia que dispomos com os mesmos cuidados, técnicas, arte e garra daqueles que não dispunham de tantos recursos e criavam obras maravilhosas.

A Cinemateca Brasileira, localizada na Vila Clementino em São Paulo, tem promovido anualmente a Jornada Brasileira de Cinema Silencioso.
Informações: jornadacinemasilencioso@cinemateca.org.br

O cartaz de cinema

Por Marcelo Pallotta

O cartaz sempre andou de mãos dadas com o cinema. Ele foi a principal forma de divulgação da sétima arte até a invenção da TV e, bem mais tarde, da Internet.

Com a profissionalização da indústria cultural, a comunicação também se modernizou. Não é de hoje que Hollywood chama o cartaz de “key art”, ou seja, arte-mestra, da qual deriva toda a comunicação de um filme. Todas as peças de divulgação seguem o foco definido pelo cartaz.

A tradução do filme em uma arte impressa jamais consegue abranger tudo o que há nele. Nem mesmo o trailer, que usa os mesmos elementos, como som e imagem em movimento, abarca todo o filme. Só o filme é o filme. A definição do foco do cartaz é fundamental para compensar as limitações das mídias de divulgação.

Essa estratégia é pautada pela “santa trindade”: produtor, diretor e distribuidor. O material de comunicação tem de contemplar questões comerciais e criativas, sempre com muitas pessoas envolvidas no processo de aprovação.

O combinado entre a relevância visual e sua verdade em relação ao filme deve ser o objetivo a ser atingido. Se isso for passado de forma verdadeira, podemos dizer que atingimos o status de arte – o que explica um mercado de cartazes com lojas, exposições e até leilões.



Alguns cartazes originais atingem preços dignos do mundo de artes plásticas. Os artistas que os elaboram são renomados designers: Saul Bass, Pablo Ferro, Steve Frankfurt, Wieslaw Walkuski e o brasileiro Ziraldo, entre outros.



Cartazes como “The Man with the Golden Arm” e “Vertigo” (Saul Bass), “Emmanuelle” e “Downhill” (Steve Frankfurt) e “Breaking the Waves” (Wieslaw Walkuski) são disputados por colecionadores. Afinal, o relacionamento com a obra transcende seu grafismo, fazendo desse registro uma emoção ainda maior.

Texto publicado no Portal Tela Brasil. Publicação autorizada.

Exibir é viver

Por Henry Grazinoli (Consultoria de conteúdo: André Gatti)

O escritor argentino Jorge Luis Borges defende, em um de seus ensaios, que a obra de arte só existe quando encontra o público. Quer dizer, o original de um livro pode ser genial, mas, se ficar guardado numa gaveta, se ninguém ler, ele não existe enquanto obra de arte. Uma imagem pintada, por mais incrível que seja a técnica empregada em sua criação, não é uma obra de arte, se não for exposta. O mesmo acontece com o cinema: pra que filmar, pra que gastar um monte de tempo, de dinheiro e de energia pra realizar um filme, se ele não chegar aos olhos do público?

A exibição é uma etapa fundamental do processo cinematográfico – ela é a responsável direta por promover o encontro da obra com a audiência. No início de sua história, os filmes tinham exibição ambulante, em feiras de variedades, circos e cabarés, geralmente como atrações complementares. Em pouco tempo, o cinema ganhou autonomia e passou a ser exibido em salas exclusivas.

Até os anos 50, o cinema, como entretenimento, só concorria com o rádio. Por isso, assistir a filmes em luxuosas salas foi uma das maiores diversões de nossa sociedade. Hoje em dia, no entanto, é cada vez mais difícil separar o cinema das outras artes audiovisuais, e a exibição passou a abarcar as salas de cinema, a TV, os DVDs, a Internet, os celulares e aparelhos MP4.

Apesar de possuir esse papel fundamental no processo cinematográfico, a exibição não é sistematizada, no Brasil. Faltam estudos e pesquisas especializadas, faltam abordagens que não estejam focadas apenas na exibição enquanto mercado (fonte de lucro) ou romantismo (importância artística).

Exibir filmes é colocá-los em contato direto com as pessoas, é levar pra perto de um monte de gente uma porção de ideias e sentimentos. Exibir filmes é formar público para manter vivo o ato de contar e ouvir histórias. É manter viva a arte do cinema, seja na tela grande, na TV de casa, no monitor de um ônibus, num microcomputador ou num telefone celular. Exibir filmes é manter ativa a produção de um monte de artistas que se dedicam ao meio audiovisual.

Texto publicado no Portal Tela Brasil. Publicação autorizada.

Profissionais da exibição: Nelson Soares de Carvalho, projecionista

O cinema na alma
Por 25 anos, ele desfilou Bergman, Antonioni, Buñuel, Godard na tela classe A da Roosevelt
Por Laura Greenhalgh (para o jornal “O Estado de S.Paulo”, de 05/08/2007)

Coincidência não é ficção. Mesmo quando beira o improvável, como a perda de dois dos maiores diretores de cinema no século 20, em 30/07/2007, um na Suécia, outro na Itália. Pois Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni morreram assim, como que fazendo uma molecagem com a platéia, precedida de um pacto com Deus. Encerraram a fatura de suas vidas com horas de intervalo entre um último suspiro e outro. Tanto dia para morrer e eles se foram no mesmo comboio. Gran finale.

Mais previsíveis são as coincidências que aproximam a vida do Nelson da história do Alfredo, personagem central de Cinema Paradiso. Tanto que um programa de TV, anos atrás, fez uma entrevista apressada com o Nelson, sapecou a trilha do Ennio Morricone ao fundo e cravou: ele é o Alfredo brasileiro. Ora, ora. Não que o Nelson evite ser comparado com o personagem interpretado por Phillipe Noiret, no filme de Tornatore. É que o Nelson, com esse jeito interiorano de ser, falante e encabulado ao mesmo tempo, entende um bocado de cinema. Mais que o adorável Alfredo. Saca umas coisas incríveis, pede licença para declarar “Eu amo a sétima arte” e, com propriedade, comenta a comparação que fizeram pra cima dele: “Pode até ser interessante, mas corre o risco de ficar piegas”.
Cena do filme "Cinema Paradiso"

Então, combinemos. O Nelson não é o Alfredo. Mas nós, ou seja, toda uma geração de freqüentadores e curtidores de cinema, viramos “Totó” nas mãos do Nelson. Acabamos por nos assemelhar ao garotinho que projetava olhares de emoção e descoberta na tela, enquanto, da cabine, Alfredo projetava fitas com beijos censurados.
Nelson Soares de Carvalho, nos revelou Bergman e Antonioni, mas também Fellini, Kurosawa, Buñuel, Godard, Gavras, Pasolini, Resnais, Truffaut, Monicelli, entre tantos grandes diretores. Durante quase três décadas, ele foi o projecionista do cine Bijou, ainda hoje o mais lembrado cinema de arte de São Paulo. “Antigamente, falava-se operador de cabine. Depois é que inventaram o termo projecionista, mais chique. A própria expressão cinema de arte veio mais tarde. Primeiro dizíamos cinema classe A.

De 1971 a 1996, Nelson “morou” na cabine do cineminha da Praça Roosevelt, no centro da cidade. Por ele circularam artistas e intelectuais de São Paulo, universitários ávidos por derrubar a ditadura, uma diversificada fauna urbana, hippies, desocupados, padres, senhoras bem vestidas, meninas de colégio, olheiros da repressão (vai ver até que algum era cinéfilo), fora os famosos moradores das redondezas. Quem, por exemplo? Até o vendedor de frutas do pedaço, ainda hoje com banquinha na ativa, é capaz de lembrar: Marília Gabriela, Ignacio de Loyla Brandão, Jardel Filho, Jacinto Figueira Jr., a cantora Leni Everson... moradores da praça, sim senhor. Jô Soares, além de devorador das massas do Gigetto, também circulava no pedaço e não raro acomodava o corpanzil bem abastecido nas poltroninhas vermelhas do Bijou. Idem para a atriz Dina Sfat, ok, sem corpanzil, mas com uma beleza que faz o Nelson suspirar ainda hoje: “Vinha sempre aqui. Às vezes com o marido, Paulo José. Adoravam cinema”. A praça era lugar de bacanas e descolados na passagem para os anos 70 e o cinema vivia em boa companhia. Quase na esquina com a Consolação ficava o restaurante Baiúca, com móveis pé-de-palito, bar elegante e um piano teclado por Moacyr Peixoto, em torno do qual cantaram moçoilas como Claudette Soares e Elis Regina - que tal? Ainda na praça, o cabeleireiro da moda (Jacques Janine) e uma doceira parisiense no estilo (a Vendôme). Pois no quartier, informa-se a quem não tem idade para saber, ficava o Bijou, inaugurado em 1962 por Harry Wilhoit, um ex-funcionário da Universal, supostamente francês, que um belo dia sumiu da praça e do Brasil.

VULCÕES DE EMOÇÃO
No final dos anos 60, Wilhoit vendeu o Bijou para Francisco Coelho, dono de cinemas no Brás e na Penha, e voltou para a Europa. Conta-se que nos primórdios, Wilhoit e a mulher, Teresa, comandavam pessoalmente a salinha de 137 lugares. Ela vendia o bilhete e ele o recolhia à entrada. Desde sempre o Bijou fez a opção pela qualidade. São Paulo tinha cinemas palacianos, como o Marabá, o Marrocos, o Olido, com platéias imensas, lustres, espelhos, escadarias, exibindo a produção de Hollywood para as massas. Já o Bijou, metido a besta, ficava com os planos heterodoxos de Resnais, os vulcões emocionais de Bergman, os silêncios de Antonioni, a visceralidade de Kurosawa.

Corta! Melhor interromper a história neste ponto, sem engatar nos 25 anos em que o Nelson ficou na cabine do Bijou, zelando pela projeção de filmes que fizeram cabeças e mudaram vidas. Porque a história de amor desse homem com o cinema, sem concessão à pieguice, começou lá trás, na cidade de Jales, interior de São Paulo. Flash back: o casal era pobre e tinha dez filhos. Destes, três morreram. Mariinha se foi aos 3 anos, dizem que ficou doente porque brincou com um gato. Eliseuzinho morreria mais tarde, como o pai, de enfarte do miocárdio. Celso, radialista, intelectual da família, admirado por todos, morreu dormindo, como Bergman.

Nessa prole, Nelson é o filho que, aos 11 anos, foi buscar trabalho para ajudar a mãe. “Eu carregava tabuleta para anunciar o que estava em cartaz nos cinemas de Jales, até que um dia me jogaram na cabine. Aprendi na marra e fazia serviços gerais: varria o cinema, trocava lâmpadas, buscava os filmes na estação...”. Jales deveria ser um barato: o gerente do primeiro cinema da cidade, o Santa Helena, era um certo Aguinaldo que, na Semana Santa, acelerava o projetor a manivela para fazer mais sessões do filme A Paixão de Cristo, melhorando a arrecadação. Digamos que inaugurou o Cristo chapliniano, apressadinho, sob vaias da platéia. “Ô Aguinaldo, pára de correr. Pára, homem! Uuuuu!!!”.

Ovídio, operador do cinema concorrente, foi o primeiro chefe do Nelson. Pôs o garoto diante de dois projetores 16 mm, deu instruções e passou a deixá-lo sozinho na cabine. Ovídio descia para prosear e lá ficava o Nelson, entregue a filmes como Imitação da Vida, uma espécie de desfibrilador de emoções.

É curioso: Nelson lembra muito bem do primeiro filme que projetou na vida, em 1953, mas não lembra da última sessão de cinema que comandou no Bijou. O primeiro filme chamava-se O Filho do Sol, rodado na Califórnia, cenário deslumbrante para o caso de amor da filha de um general com um índio chamado Olho D’Água - o general tinha lá suas razões, o mocinho era um canastrão, tremendo mala-sem-alça de cocar. “A fita tinha Jon Hall como protagonista”, cita Nelson, tentando azeitar a pronúncia. “Falar idiomas eu não falo. Mas entendo francês, inglês, italiano, espanhol. Minha cabeça ficou assim, um montão de sonoridades”. Não prosseguiu nos estudos. Parou na primeira série do ginásio, veio para São Paulo com a família em busca de vida melhor e acabou se enfurnando em outras cabines. “Não estudei porque não tive tempo. Minha literatura é o cinema". 

Depois de perambular na Capital atrás de trabalho, deram-lhe um bico no restaurante O Laçador, no Brás, mas logo calhou de ser chamado para teste nos cinemas da empresa Serrador. Tinha de colocar os rolos na máquina, ter noção de enquadramento, sincronismo, controle de imagem e som, um troço complicadíssimo porque a qualidade da projeção dependia de acertos manuais. E ainda precisava controlar um tal carvão, que não podia gastar, nem queimar, nem nada. Nelson não tremeu na base. Nunca. Assim como Humphrey Bogart se deu bem no set, Nelson se deu bem na cabine. “Jamais cochilei em projeção. Fui pegando tanta prática que, independentemente dos projetores que me dessem, punha a fita no lugar certo só guiado pelas engrenagens, não precisava ficar olhando o quadro, checando numerinhos, nada. Fazia passagem de uma máquina pra outra no pé”.

O primeiro emprego em São Paulo foi no cine Paulista, da Rua Augusta, nos anos 60. Lá, fizeram-lhe uma maldade. Operadores veteranos largavam tudo nas costas do novato. Daí o Nelson começou a caprichar na cabine. Limpou as lentes. Passou Kaol nas peças. Poliu espelhos refletores. Resultado: a projeção ficou uma beleza, o público comentava, o dono da sala passou a elogiar o novo funcionário. Pois os operadores, enciumados, resolveram sacanear o colega deixando queimar os carvões de propósito. Apagão na tela. “Fui demitido, mas perdoei o pessoal”, diz o Nelson, que tem uma ligação com o espiritismo.

DANÇANDO NA CABINE
Novo teste, contrato prometido nos cines Can-Can e Moulin Rouge, mas eis que o chamaram para substituir Fausto, operador do Bijou, que saía em férias. E foi assim que, em 1971, Nelson entraria na cabine que mais amou na vida, amor de 25 anos de convívio e uma saudade perene. “Não me casei. Os amigos falam ‘Nelson, você precisa de uma mulher’, mas fui me acostumando à solteirice e me doei para o cinema. No tempo do Bijou, se tive dois Natais foi muito. Eram cinco sessões diárias, a primeira às 14 horas, a última à meia-noite. Dizem que operador é o peão do cinema, mas prefiro pensar que é o artista escondido".

Francisco, o segundo dono do Bijou, manteve a programação classe A numa época fecunda do cinema estrangeiro, particularmente do europeu. Pode-se dizer que o cineminha da Roosevelt deu mais espaço para as produções de fora do que para a nacional, no tempo em que pontificavam por aqui nomes como Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Cacá Diegues, Arnaldo Jabor - “e Nelson Pereira dos Santos, como ele é bom”, agrega o xará, seguro de suas predileções. Mais tarde, Francisco resolveu fazer uma segunda salinha ao lado, com 116 lugares, que chamou de Bijou-Sérgio Cardoso. Levou para a cabine a “philipinha”, versão menor da “philipona”. Quer dizer, Nelson passou a comandar dois projetores Phillips, um em cada cinema, num corre-corre danado. Quando ficava sem ajudante, pedia ao Dimas, porteiro do Bijou, para controlar o carvão numa sala, enquanto corria para a outra, dando início à projeção. Ficava de lá para cá, mas não tirava o olho das telas. Nem desgrudava da história. Em Amarcord, clássico de Fellini, permitia-se dançar na cabine ao som da trilha insuperável de Nino Rota. “Pensavam que eu era louco ou bichona”, diverte-se. Lembra de minúcias de O Ovo da Serpente, filme que flagra, numa Berlim arrasada pela 1ª Guerra, a gênese do nazismo: “Há uma cena... o sujeito leva o charuto à boca calmamente, solta a baforada e dá uma risadinha. Aí tem Bergman!” As reminiscências brotam. “E aquela cena do sujeito na bicicleta, no Lacombe Lucien, do Louis Malle?” Ou então: “Sabe o que é filmar uma árvore, o vento batendo nela e fazer com que entendam que você está tratando da memória? É o Bergman em Morangos Silvestres”.

Era um filmaço atrás do outro, público não faltava - formavam-se filas na rua, gente esperando pela próxima sessão - e os censores da ditadura poucas vezes criaram caso, apesar de a programação do Bijou turbinar o espírito de contestação da rapaziada. Os arapongas chiaram mesmo foi para dar alvará ao filme Mimi, o Metalúrgico, de Lina Wertmüller. Esse negócio de metalúrgico, greve, protesto ainda iria render no Brasil.

Trancado numa cabine e sem tempo para viver outra coisa, Nelson procurou a bebida. Foi fundo. “Cheguei a ser internado para me desintoxicar”, confessa. Pois foi a possibilidade de perder o Bijou que o salvou do alcoolismo. Uma noite, na solidão da cabine, conseguiu dizer ao maço de Arizona que levava no bolso da camisa: “Não vou mais te fumar”. Parou com tudo. Mas o centro da cidade, não. Continuou a se degradar. Grandes cinemas cederam aos filmes pornôs, outros fecharam portas ou viraram igrejas evangélicas. O restaurante, a doceira e o cabeleireiro se foram. Universitários da USP ganharam o câmpus distante. Gente fina mudou de itinerário, moradores de rua chegaram nos becos, o público sumiu. Salas de exibição nasciam nos shoppings e as casas ganhavam videocassetes, DVD players. Ah, a geração downloading não vai entender jamais como era bom se abrigar no Bijou, em plena tarde, e sair de lá outra pessoa.

Os anos 90 foram duros pro Nelson. Ele não aprovou quando o cinema teve que dividir as salas com grupos de teatro que passariam a arrendar o espaço, lá permanecendo. “Cheguei a fazer projeção para cinco pessoas, uma tristeza... Seu Francisco me dizia ‘Nelson, desiste, não tem mais aqueles filmes, os tempos são outros’. Duvidei. Se o cinema do shopping era bonito, a gente tinha que melhorar o Bijou. Aposto que o público voltaria!”.

Última tomada! Hoje, Nelson é um sem-cinema. Desempregado, dribla problemas de saúde decorrentes dos anos de cabine. Incomoda-o a maldita hérnia. Tenta viver com R$ 700 por mês, morando num fundo de casa do ex-patrão. Luxo, só um: economizou até comprar um aparelho de DVD e iniciar sua coleção de filmes. Tem 142. Vive para rever. A médica do INSS disse-lhe outro dia: “Seu Nelson, o senhor não tem nada”. Ele respondeu: “Aparentemente”.

Leia mais sobre a profissão de projecionista (clique aqui).

Entrevista cedida ao site Pop4

Salas de cinema são parte da história

Por Nanda Rovere (Historiadora e estudante de jornalismo. Apaixonada por cultura, pesquisa e escreve sobre teatro desde a década de 90)

O cinéfilo-pesquisador Antonio Ricardo Soriano concede entrevista ao Pop4.

Na década de 40 e 50, entre as Avenidas São João, Ipiranga e Duque de Caxias, localizavam-se as salas de cinema que formavam a Cinelândia Paulistana. Para a arquiteta Paula Santoro, a Cinelândia Paulista foi parte da construção de uma imagem cosmopolita que hoje se tem de São Paulo: "Simboliza um momento onde havia uma articulação entre planejamento urbano e arquitetura, planejamento urbano e programa dos edifícios, que há muito perdemos. Agora, quem dita o que se constrói é o mercado e o Estado ‘corre atrás’ dos espaços que restam para fazer os equipamentos que precisa, e ainda paga caro por isso", afirma.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, a produção americana ganha força e a abertura de novas salas na capital paulista impulsiona a vida cultural de seus habitantes. As salas eram luxuosas e as mais elegantes da capital. Sair para as sessões de cinema exigia traje a rigor. Os preços eram diversos e os filmes para todos os gostos. Os cinemas tinham salas lotadas, como hoje acontece nos shoppings. Durante 30 anos vimos a era de ouro do cinema em São Paulo.

Nas décadas de 70 e 80, há a decadência do centro e as grandes salas de rua passam por especulação imobiliária. As que não fecharam se transformaram em cines eróticos ou foram vendidas às igrejas evangélicas. Existem salas que sobreviveram à tradição de estar na rua, como o Espaço Itaú de Cinema Augusta, na Rua Augusta.

Cinemas como o Dom José, na Rua Dom José de Barros, o Windsor, na Av. Ipiranga, e o Palácio do Cinema, na Av. Rio Branco, que não conseguiram sobreviver com a decadência do centro, mas conseguem um bom público para os filmes de sexo explícito, são os resquícios históricos de um passado em que a vida acontecia na nobre região central da cidade.

Ações de revitalização da região central, projetadas pela iniciativa privada, governo e organizações não governamentais, preveem a reforma de cinemas tombados e sua transformação em espaços públicos de espetáculos.

Em outubro do ano passado, o Secretário Municipal de Cultura, Carlos Augusto Calil, deu o primeiro passo para a concretização desse projeto, anunciando a desapropriação dos cinemas Art Palacio, Ipiranga e Marrocos. Não sabemos, no entanto, quanto tempo pode levar esse processo e se o resultado será positivo. O Art Palacio pode virar casa de shows e musicais, o local está sendo desapropriado pela Prefeitura e a sala voltará a fazer parte da vida cultural da capital. É esperar para ver.

O pesquisador Antonio Ricardo Soriano mantém um blog no qual preserva a história dos cinemas e contribui para que o cidadão se conscientize que preservá-los é preservar parte de nossa cultura.
Vale a pena visitar: http://salasdecinemadesp.blogspot.com. O blog reúne uma coletânea de textos e fotos das salas de cinema antigas e atuais. Um acervo ímpar sobre parte da história dos antigos cinemas de rua.
Nesta entrevista, Soriano fala sobre como surgiu a ideia de criar o blog e nos dá informações e opiniões importantes, sobre a história das nossas salas de cinema e da nossa cultura:

Nanda Rovere - Como surgiu a ideia do blog? O que pode destacar no conteúdo que está disponível nele?
Antonio Ricardo Soriano - A ideia surgiu da saudade que tenho de um cinema em especial, o cine Comodoro. Este cinema é o destaque, sendo a principal homenagem do blog. O Comodoro se estivesse funcionando até hoje seria o melhor cinema de São Paulo, em termos de qualidade de exibição e som. As salas de cinema de hoje são confortáveis, mas muito pequenas. As telas são menores e, na maioria delas, o som é fraco. O som sendo baixo e mal distribuído na sala, você acaba ouvindo o ruído de outras pessoas, como conversas, barulho de embalagens e da pipoca, tirando a atenção das pessoas durante a exibição do filme. A plateia do Comodoro tinha mais de 1000 lugares, incluindo o balcão superior (usada, principalmente, pelos casais de namorados), a projeção era em 70 mm, pois a tela era gigantesca e o som, em 6 canais, tinha potência e qualidade nunca vistas até hoje.

NR - Chegou a frequentar salas do centro de São Paulo? Quais?
ARS - Sim, muitas. Comodoro, Cinespacial, Regina, Ritz (São João), Olido, Paissandu, Ipiranga, Marabá, Metropole, Ouro e outros.

NR – Neste sentido, qual a importância das mesmas na história de São Paulo e do nosso cinema?
ARS - O valor das antigas salas é algo que a maioria dos brasileiros não se preocupa: a importância do Patrimônio Histórico Cultural do local. Tivemos este descaso, recentemente, com o cine Belas Artes. Nos EUA e na Europa, muitos cinemas já foram demolidos como os daqui, mas muitos foram conservados, restaurados e funcionam até hoje. Já que não tenho muitos bons exemplos em São Paulo, procuro destacar reformas e restaurações de cinemas em outros Estados do País e comecei a postar bons exemplos de outros Países.

NR - O que pensa sobre o processo de revitalização do centro? O tombamento trará benefícios aos cinemas?
ARS - Pelas informações que tenho, os poucos cinemas tombados no centro, provavelmente, não funcionarão como cinema. Um será teatro, outro casa de espetáculos, etc. Isso é péssimo! O cine Ipiranga, por exemplo, foi desenhado pelo renomado arquiteto Rino Levi, que fez estudos detalhados para que o Ipiranga fosse um cinema majestoso. Estudou o acesso do público, a acústica, tudo para que o local fosse um cinema e não um teatro. No blog, tem uma postagem homenageando Rino Levi.

NR - Qual a sua opinião sobre a reforma do Marabá?
ARS - Foi uma ideia maravilhosa de uma grande empresária, que pôde arriscar. Não fui conhecer o cinema, pois não tenho vontade de ir ao centro, por ser ainda um local muito perigoso e frequentado por drogados, mendigos, etc.

NR - Como vê as salas de cinema hoje, quanto à qualidade técnica e de programação?
ARS - A localização é boa. Temos restaurantes, lanchonetes, sorveterias, segurança, estacionamento, mas…, como já disse, a maioria das salas são muito pequenas, e o principal, as telas também são pequenas e o som é muito simples. Alguns cinemas, como o Espaço Itaú de Cinema Pompéia possuem excelente qualidade de som, mas é um raro exemplo. Neste complexo, só a sala IMAX possui tela grande, mesmo assim, menor que as salas IMAX de outros países. A programação de lá, também, é muito interessante, misturando produções europeias com grandes sucessos de Hollywood. Os exibidores estão pensando demais em lucros, pois já percebi que bons filmes estão saindo direto em DVD, como "Decisões Extremas", com o grande astro Harrison Ford.

NR - Cinemas como Dom José e Windsor entraram na grade de programação da Virada Cultural. Em sua opinião, isso contribui para que o valor histórico desses locais seja valorizado?
ARS - Os cines Dom José e Windsor deveriam conseguir um patrocínio ou uma sociedade com a Cinemateca Brasileira ou outra organização cultural. Chega de filmes pornô! Não adianta nada passar filmes decentes apenas por uma noite. Falta coragem e ousadia para o dono destes cinemas. Eles estão bem conservados e possuem boa localização e uma linda arquitetura, portanto, mereciam voltar com uma programação de filmes de arte ou até mesmo, reprises.

NR - Qual tipo de filme você aprecia?
ARS - Gosto de filmes que encantam, que nos fazem bem e que nos trazem uma boa mensagem ou lição de vida. Tanto o cinema americano como o Europeu nos encantam com boas histórias, belas paisagens, bons atores, bons efeitos especiais, etc. Um bom exemplo de um filme recente e bem feito: "O Segredo dos seus Olhos", de , com Ricardo Darin.

NR - Gostaria de acrescentar alguma informação?
ARS - Os antigos cinemas de bairro foram de grande importância para os paulistanos, principalmente aqueles que não tinham condições de ir aos cinemas do centro, que exigiam, até mesmo, trajes de luxo para entrar. A prefeitura deveria instalar um cinema público em cada grande bairro de São Paulo, aproveitando espaços como AMA’s, escolas, prédios abandonados, etc. O ingresso poderia ser barato e a programação seria de clássicos (com a ajuda da Cinemateca Brasileira) ou de filmes que já saíram de cartaz. O antigo cine Gemini reprisava filmes atuais e tinha um público razoável. Afinal, depois de serem exibidos em todos os shoppings de São Paulo, para onde vão parar os rolos de filmes? Eles seriam muito bem reaproveitados nos novos cinemas de bairro, que seriam um ótimo exemplo de inclusão social e cultural. Pessoas de baixa renda, idosos e deficientes físicos poderiam, com maior facilidade, ter o prazer de assistir à bons filmes bem próximo de casa. Nos anos 50, 60 e 70, só nos bairros próximos de minha casa (Pirituba e Freguesia do Ó) haviam quatro ótimos cinemas.

Texto publicado em 24/05/2011 no site Pop4 e revisado em 30/03/2012.

Sobre a POP4
Foram quatro anos entre a criação da revista Opperaa e o surgimento do Pop4. Ao se fundirem em 2011, surge uma nova revista, com novos ares.
A mudança também aponta caminhos possíveis, em que a crítica cultural ensaística convive lado-a-lado com pílulas sobre indústria do entretenimento num ritmo veloz.

Cine Santa Cecília: uma visão poética

Punti Luminosi
Uma visão poética do passado paulistano, penetrando na intimidade do cine Santa Cecília, monumento dos anos 30 onde os meninos e as meninas sonhavam e seus papais, vovós... perdidos entre os deuses das telas e o próprio cenário de miragem, pontos luminosos num teto que mais parecia um céu.

Na Av. General Olímpio da Silveira, nº 201 existia um circo & um palhaço. Trapezistas, engolidores de fogo, equilibristas & um cantor que tocava ao mesmo tempo gaita e guitarra & fazia TI RO LE RIIIK para a lua metálica & o verão cheio de pipocas.


Na Av. General Olímpio da Silveira, nº 215 havia um cinema com um dragão como luminoso & no teto, quando as luzes se apagavam, acendiam-se estrelas. Os bancos da sala de espera tinham elefantes nas extremidades & dois budas fitavam a sala com seus olhos verdes.



O circo chamava-se Circo Piolim e vocês sabem muito bem disso. O cinema era o Cine Santa Cecília e vocês sabem, é claro que sabem... Acontece que o circo e o cinema, por mais barroco que seja o poeta, são supérfluos.

E, por mais romântico que seja o poeta, o circo é anacrônico e os cinemas podem acabar. Mesmo que Buda nos fite no escuro, inda que tenham Dragões na fachada & as estrelas de cinema usem Lever ou Lux... Mas, por mais moderno que seja o poeta, ele não pode recusar-se a contar. Ele é mais curioso que o leitor...

Dê-me, pois tempo para terminar este almoço e esta sobremesa, espere um momento que já guardo o pente Flamengo no bolso traseiro de minha primeira calça comprida comprada no Mappin. Ela é larga o suficiente para que eu cresça e consiga fazer minhas pernas romperem as costuras. Esta meia Lupo azul-marinho é sensacional... A camisa é um pouco velha, mas o paletó, graças a Deus! Cobre bem o traseiro. Meto o pente no bolso interno do paletó (é mais distinto), testo o topete cheio de Glostora e, vamos em frente...

Como é bonita a linha que divide a sombra do sol lá fora. E como é forte esse sol! Vou pela Rua Lopes Chaves sem saber quem foi Lopes chaves ou Mário de Andrade. Dobro à esquerda a rua estreita que depois se alarga e tem uma casa no meio dela dividindo-a e onde mora o Sr. Nunca Ninguém Viu. Lá não tem luz, nem telefone, as janelas nunca se abrem e, no entanto, diz-se que lá mora um velho que inventou um corante para as balas Jujuba. Ele é careca, portanto forte, mora com duas irmãs que nunca vi, mas sei que são velhas brancas e fracas, não têm dentes e esperam a morte segurando um lampião comprido. Prossigo enfrentando os reflexos das vidraças partidas onde eu nunca atirei uma pedra.

Rua acima, à esquerda, um campinho de futebol e a molecada da rua de lá, que tem direito ao campo de cá, porque suas casas dão fundos com o lado de cá, embora a frente dê para os cortiços do lado de lá, onde moram aquelas pessoas que podem fazer mal às mocinhas e, eventualmente, aos meninos também.

No meio do campo, uma égua lustra-se ao sol de Domingo; em volta dela os meninos falam alto e gesticulam e os dois italianinhos gêmeos, aqueles que passam tocando caixa em latas, que cortam os cabelos à escovinha, que têm um aspecto tão azul-marinho e que sempre me pareceram ligeiramente epiléticos, estão mamando na égua, incentivados pela garotada. As tetas se alongam como as da loba de Roma, alongam-se mais e mais, e, ó cena olímpica! o Domingo vira do avesso! A égua é cavalo! A criançada espalhasse, satisfeita como lobos lascivos, quando o pai peso-mosca dos meninos agita os punhos sobre o muro e jura pelo Cristóvão Colombo, figlio di mignota, que vai matar todo mundo, principalmente a mim que continuei lá olhando suas orelhas de mosca pegando fogo.

O carcamano tinha uma escopeta, dizia-se, mas eu já estava atravessando a General Olímpio da Silveira e misturando-me à fila do Cine Santa Cecília. Essa fila que termina na Rua Conselheiro Brotero, exatamente do outro lado daquela enorme casa branca e alta que dizem... Essa é outra história e voltaremos a ela.

Passo pela bilheteria lateral (sempre fechada) e na esquina da General Olímpio, lá no alto, exorcizando esse vórtice mágico onde Santa Cecília, Higienópolis, Barra Funda e Perdizes se encontram, está o Dragão de ferro com as asas cobrindo a cauda demoníaca e uma estrela encimando-o onde se lê: Cine Santa Cecília.

Se Cecília, como diz o Almanak, quer dizer cega, que olhos extraíram do puro sonho essa arquitetura? Que alma pulsou sobre aquele espaço e disse: “Aqui ficará o Dragão e aqui esta cúpula que deverá ser plena e humana como o ventre da mulher?” Quem traçou a rigorosa teoria de eixos disfarçada por essa casca, que consegue transformar uma esquina banal num encontro com a eternidade? Ele também nasceu de mulher. Seu nome é: Álvaro de Salles Oliveira (engenheiro). Um nome tão real quanto Fernam Garcia Escaravunha ou Joan de Cangas. Foi ele que gravou: - Álvaro Fecit.

Ele sabia que, nessa tarde de 1956, o calor era forte e precisávamos sair instantaneamente dessa luz que expõe nossa mortalidade e entrar nessas *abóbadas de ópio e hashish que nos afirmam eternos. Essas abóbodas: três na sala de espera e a grande abóbada da sala de espetáculos. Em 1973, escrevi: As abóbadas / abobadas / viram-se / dependuradas / nas abóbadas / das abobadas. Dois anos depois encontrei um título (via Sêneca): Apocoloquintose (a transformação do “divino” Cláudio em abóbora). Hoje escrevo isto tudo porque detesto mistérios.

A bilheteria do cinema, consegui encontrá-la num depósito na Av. Celso Garcia. Os bancos da sala de espera (com elefantes nas extremidades), encontrei-os acolá na mesma avenida. Atualmente sobrevivem num cinema da Penha. As conchas marinhas do teto, na casa de um burocrata da sétima arte transformadas em abajur.

E a ideia de procurar o Dragão e colocá-lo nos portões de uma casa com enormes jardins e, para habitá-la, uma loira de vestido justo que me abandonaria partindo todos os espelhos, tirei do Orson Welles. Mas naquele tempo eu ia ao cinema e não tinha nenhum livro e tudo que eu dizia tinha o som dos saudáveis jacarés do pântano. Eu nunca sentia que Fernando Pessoa dizia comigo: “no tempo em que festejavam o dia dos meus anos eu era feliz e ninguém tinha morrido”. Ou Mallarmé: “A carne é triste e eu já li todos os livros, todos”.

A sala de espera tinha espelhos e colunas encimadas por elefantes de marfim e, já disse, três abóbadas com conchas e elementos florais. E se esqueci, nessa tentativa de descrever de fora para dentro, de dentro para fora se via a rua com a luz filtrada por treliças de madeira que me faziam merecer tantas odaliscas quanto os vizires que logo mais seriam envenenados pelos ministros de olhar rapace. Descarnemos um pouco esta descrição, que nunca chegará a Nouveau Roman e copiemos a nós mesmos quando em 1975 escrevemos:
“É um grande recinto em desnível, a plateia é uma laje inclinada, há um mezanino com suporte lateral, onde estão os camarotes (solução clássica). Exatamente no decór é que o Cine Santa Cecília se transfigura. Esse decór minucioso e fantástico que o arquiteto Joseph Pitillik aplicou-lhe. Os elementos decorativos da fachada contribuem para isso, basta observar o Dragão sobre a esquina da Rua Conselheiro Brotero. Ao entrar no edifício, a grande sala de espera aumenta a sensação: bancos de quatro metros, com elefantes feitos em madeira entalhada nas extremidades, as abóbadas extremamente trabalhadas em estilo oriental, as luminárias: conchas de vidro colorido, os espelhos, as colunas com cabeças de elefante, as arcadas com painéis estranhos lembrando mesquitas ou templos muçulmanos, mas daquela arte que na realidade os árabes levaram para o Norte da Índia. O painel desenhado na arcada esquerda tendo ao pé o bronze de uma mulher em posição de meditação é bem característico disso. É evidente que se trata de uma obra eclética, onde encontramos desde motivos florais até elementos geometrizantes. A grande abóbada de inspiração zenital contribuía decisivamente para criar um ambiente de sonho no interior do cinema. Possuía estrelas de 160 a 60 centímetros de diâmetro, iluminadas desde o interior, que se acendiam progressivamente enquanto o cinema escurecia para o início da sessão. Graças a exaustores colocados no recinto e à permanência da iluminação das estrelas, tinha-se a impressão de estar-se ao ar livre. Graças às figuras de bronze ao lado da boca de cena que permaneciam com as pupilas iluminadas durante a projeção e aos efeitos mágicos da abóbada, estávamos em plena viagem pela Slumberland. O efeito quase hipnótico conseguido é atestado pela permanência na memória das pessoas...”

Foi lá que a garota que eu amava trouxe uma amiga muito mais bonita que ela para sentar comigo e foi sentar com meu melhor amigo – o que quase me matou de ciúme. Para lá foram as três costureirinhas de Mário de Andrade. Desse cinema falou Guilherme de Almeida. Lá, ele presume, encontraram-se Oswald de Andrade e Mme. Rollah num dia de chuva oblíqua e dissimulada. Por lá passava o bonde Penha-Lapa, que eu sempre detestei, pois meu herói era o Barra Funda 12 ou 13, o Vila Buarque e o misterioso Rubino de Oliveira.

Lá aconteceram tantas coisas que minha imaginação fatigada recusa-se a liberar e minha memória machucada evita projetar. Ezra Pound e Eça de Queiroz, juntos, lançaram daquela esquina imprecações contra todos que afirmam que Greta Garbo é melhor que Monica Vitti, que Totó não é o melhor cômico do cinema, que Roberto Piva não é o maior poeta brasileiro, que Muhammad Ali se chama Cassius Clay, que a palavra escrita não é a mais fascinante das artes, que Lex Baxter não foi o melhor Tarzan.

Se existisse o Cine Santa Cecília seria o melhor contraponto para um filme de Tarantino, a melhor solução para aquela encruzilhada. Como ele foi destruído pela dentadura de ferro do “progress” e como ninguém pôde ou quis impedir, hoje ele é um crediário de pneus embaixo do Elevado Costa e Silva, popularmente conhecido por Minhocão. Sua terra amarela e maldita, e nela nunca nada existirá para sempre. Há anos Hermes Macedo mandou destruí-lo, há anos ordenaram a Piolim que abandonasse o circo e o desmontaram. Desde então, os dois espaços lá estão: inúteis, desolados, malditos. A casa branca, em frente ao cinema, que tem uma estranha história, é hoje um posto de gasolina. Piolim morreu pobre e sem circo. De que vale uma medalha no peito e o nome numa rua (é claro que essa rua existe). Um palhaço quer um circo, espaço sagrado, elo entre o Homem e o Sonho.

Diga-se dos donos de São Paulo, que carregam tanta culpa, que eles despojaram, humilharam e entristeceram seu maior artista de circo, que eles destruíram um cinema maravilhoso e por anos não tiveram imaginação para construir nada em seu lugar. Que eles nunca farão, isso eu vejo claro como o dia, nada que dure onde existiu um cinema protegido por Santa Cecília e um circo que pertenceu ao querido Piolim.

Este texto é o desenvolvimento poético de uma tese minha que afirma existirem na paisagem urbana elementos que se transfiguram em totens. Ao serem destruídos, tornam maldito o espaço que ocupavam.

Agradecimentos: arquitetos Júlio Katinsky e Maria Helena Flynn.

Pesquisa realizada durante o Curso de Pós-Graduação “Art-Déco no Brasil”, dado por Aracy Amaral – ECA/USP.
Texto publicado na revista “Cidade”, nº 4, 1996. Publicação no blog autorizada pelo autor.

O LANTERNINHA

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BIBLIOGRAFIA DO SITE

PRINCIPAIS FONTES DE PESQUISA

1. Arquivos institucionais e privados

Bibliotecas da Cinemateca Brasileira, FAAP - Fundação Armando Alvares Penteado e Faculdade de Arquitetura e Urbanismo - Mackenzie.

2. Principais publicações

Acervo digital dos jornais Correio de São Paulo, Correio Paulistano, O Estado de S.Paulo e Folha de S.Paulo.

Acervo digital dos periódicos A Cigarra, Cine-Reporter e Cinearte.

Site Arquivo Histórico de São Paulo - Inventário dos Espaços de Sociabilidade Cinematográfica na Cidade de São Paulo: 1895-1929, de José Inácio de Melo Souza.

Periódico Acrópole (1938 a 1971)

Livro Salões, Circos e Cinemas de São Paulo, de Vicente de Paula Araújo - Ed. Perspectiva - 1981

Livro Salas de Cinema em São Paulo, de Inimá Simões - PW/Secretaria Municipal de Cultura/Secretaria de Estado da Cultura - 1990

Site Novo Milênio, de Santos - SP
www.novomilenio.inf.br/santos

FONTES DE IMAGEM

Periódico Acrópole - Fotógrafos: José Moscardi, Leon Liberman, P. C. Scheier e Zanella.

Fotos exclusivas com publicação autorizada no site dos acervos particulares de Joel La Laina Sene, Caio Quintino,
Luiz Carlos Pereira da Silva e Ivany Cury.

PRINCIPAIS COLABORADORES

Luiz Carlos Pereira da Silva e João Luiz Vieira.

OUTRAS FONTES: INDICADAS NAS POSTAGENS.