Profissionais da exibição: Nelson Soares de Carvalho, projecionista

O cinema na alma
Por 25 anos, ele desfilou Bergman, Antonioni, Buñuel, Godard na tela classe A da Roosevelt
Por Laura Greenhalgh (para o jornal “O Estado de S.Paulo”, de 05/08/2007)

Coincidência não é ficção. Mesmo quando beira o improvável, como a perda de dois dos maiores diretores de cinema no século 20, em 30/07/2007, um na Suécia, outro na Itália. Pois Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni morreram assim, como que fazendo uma molecagem com a platéia, precedida de um pacto com Deus. Encerraram a fatura de suas vidas com horas de intervalo entre um último suspiro e outro. Tanto dia para morrer e eles se foram no mesmo comboio. Gran finale.

Mais previsíveis são as coincidências que aproximam a vida do Nelson da história do Alfredo, personagem central de Cinema Paradiso. Tanto que um programa de TV, anos atrás, fez uma entrevista apressada com o Nelson, sapecou a trilha do Ennio Morricone ao fundo e cravou: ele é o Alfredo brasileiro. Ora, ora. Não que o Nelson evite ser comparado com o personagem interpretado por Phillipe Noiret, no filme de Tornatore. É que o Nelson, com esse jeito interiorano de ser, falante e encabulado ao mesmo tempo, entende um bocado de cinema. Mais que o adorável Alfredo. Saca umas coisas incríveis, pede licença para declarar “Eu amo a sétima arte” e, com propriedade, comenta a comparação que fizeram pra cima dele: “Pode até ser interessante, mas corre o risco de ficar piegas”.
Cena do filme "Cinema Paradiso"

Então, combinemos. O Nelson não é o Alfredo. Mas nós, ou seja, toda uma geração de freqüentadores e curtidores de cinema, viramos “Totó” nas mãos do Nelson. Acabamos por nos assemelhar ao garotinho que projetava olhares de emoção e descoberta na tela, enquanto, da cabine, Alfredo projetava fitas com beijos censurados.
Nelson Soares de Carvalho, nos revelou Bergman e Antonioni, mas também Fellini, Kurosawa, Buñuel, Godard, Gavras, Pasolini, Resnais, Truffaut, Monicelli, entre tantos grandes diretores. Durante quase três décadas, ele foi o projecionista do cine Bijou, ainda hoje o mais lembrado cinema de arte de São Paulo. “Antigamente, falava-se operador de cabine. Depois é que inventaram o termo projecionista, mais chique. A própria expressão cinema de arte veio mais tarde. Primeiro dizíamos cinema classe A.

De 1971 a 1996, Nelson “morou” na cabine do cineminha da Praça Roosevelt, no centro da cidade. Por ele circularam artistas e intelectuais de São Paulo, universitários ávidos por derrubar a ditadura, uma diversificada fauna urbana, hippies, desocupados, padres, senhoras bem vestidas, meninas de colégio, olheiros da repressão (vai ver até que algum era cinéfilo), fora os famosos moradores das redondezas. Quem, por exemplo? Até o vendedor de frutas do pedaço, ainda hoje com banquinha na ativa, é capaz de lembrar: Marília Gabriela, Ignacio de Loyla Brandão, Jardel Filho, Jacinto Figueira Jr., a cantora Leni Everson... moradores da praça, sim senhor. Jô Soares, além de devorador das massas do Gigetto, também circulava no pedaço e não raro acomodava o corpanzil bem abastecido nas poltroninhas vermelhas do Bijou. Idem para a atriz Dina Sfat, ok, sem corpanzil, mas com uma beleza que faz o Nelson suspirar ainda hoje: “Vinha sempre aqui. Às vezes com o marido, Paulo José. Adoravam cinema”. A praça era lugar de bacanas e descolados na passagem para os anos 70 e o cinema vivia em boa companhia. Quase na esquina com a Consolação ficava o restaurante Baiúca, com móveis pé-de-palito, bar elegante e um piano teclado por Moacyr Peixoto, em torno do qual cantaram moçoilas como Claudette Soares e Elis Regina - que tal? Ainda na praça, o cabeleireiro da moda (Jacques Janine) e uma doceira parisiense no estilo (a Vendôme). Pois no quartier, informa-se a quem não tem idade para saber, ficava o Bijou, inaugurado em 1962 por Harry Wilhoit, um ex-funcionário da Universal, supostamente francês, que um belo dia sumiu da praça e do Brasil.

VULCÕES DE EMOÇÃO
No final dos anos 60, Wilhoit vendeu o Bijou para Francisco Coelho, dono de cinemas no Brás e na Penha, e voltou para a Europa. Conta-se que nos primórdios, Wilhoit e a mulher, Teresa, comandavam pessoalmente a salinha de 137 lugares. Ela vendia o bilhete e ele o recolhia à entrada. Desde sempre o Bijou fez a opção pela qualidade. São Paulo tinha cinemas palacianos, como o Marabá, o Marrocos, o Olido, com platéias imensas, lustres, espelhos, escadarias, exibindo a produção de Hollywood para as massas. Já o Bijou, metido a besta, ficava com os planos heterodoxos de Resnais, os vulcões emocionais de Bergman, os silêncios de Antonioni, a visceralidade de Kurosawa.

Corta! Melhor interromper a história neste ponto, sem engatar nos 25 anos em que o Nelson ficou na cabine do Bijou, zelando pela projeção de filmes que fizeram cabeças e mudaram vidas. Porque a história de amor desse homem com o cinema, sem concessão à pieguice, começou lá trás, na cidade de Jales, interior de São Paulo. Flash back: o casal era pobre e tinha dez filhos. Destes, três morreram. Mariinha se foi aos 3 anos, dizem que ficou doente porque brincou com um gato. Eliseuzinho morreria mais tarde, como o pai, de enfarte do miocárdio. Celso, radialista, intelectual da família, admirado por todos, morreu dormindo, como Bergman.

Nessa prole, Nelson é o filho que, aos 11 anos, foi buscar trabalho para ajudar a mãe. “Eu carregava tabuleta para anunciar o que estava em cartaz nos cinemas de Jales, até que um dia me jogaram na cabine. Aprendi na marra e fazia serviços gerais: varria o cinema, trocava lâmpadas, buscava os filmes na estação...”. Jales deveria ser um barato: o gerente do primeiro cinema da cidade, o Santa Helena, era um certo Aguinaldo que, na Semana Santa, acelerava o projetor a manivela para fazer mais sessões do filme A Paixão de Cristo, melhorando a arrecadação. Digamos que inaugurou o Cristo chapliniano, apressadinho, sob vaias da platéia. “Ô Aguinaldo, pára de correr. Pára, homem! Uuuuu!!!”.

Ovídio, operador do cinema concorrente, foi o primeiro chefe do Nelson. Pôs o garoto diante de dois projetores 16 mm, deu instruções e passou a deixá-lo sozinho na cabine. Ovídio descia para prosear e lá ficava o Nelson, entregue a filmes como Imitação da Vida, uma espécie de desfibrilador de emoções.

É curioso: Nelson lembra muito bem do primeiro filme que projetou na vida, em 1953, mas não lembra da última sessão de cinema que comandou no Bijou. O primeiro filme chamava-se O Filho do Sol, rodado na Califórnia, cenário deslumbrante para o caso de amor da filha de um general com um índio chamado Olho D’Água - o general tinha lá suas razões, o mocinho era um canastrão, tremendo mala-sem-alça de cocar. “A fita tinha Jon Hall como protagonista”, cita Nelson, tentando azeitar a pronúncia. “Falar idiomas eu não falo. Mas entendo francês, inglês, italiano, espanhol. Minha cabeça ficou assim, um montão de sonoridades”. Não prosseguiu nos estudos. Parou na primeira série do ginásio, veio para São Paulo com a família em busca de vida melhor e acabou se enfurnando em outras cabines. “Não estudei porque não tive tempo. Minha literatura é o cinema". 

Depois de perambular na Capital atrás de trabalho, deram-lhe um bico no restaurante O Laçador, no Brás, mas logo calhou de ser chamado para teste nos cinemas da empresa Serrador. Tinha de colocar os rolos na máquina, ter noção de enquadramento, sincronismo, controle de imagem e som, um troço complicadíssimo porque a qualidade da projeção dependia de acertos manuais. E ainda precisava controlar um tal carvão, que não podia gastar, nem queimar, nem nada. Nelson não tremeu na base. Nunca. Assim como Humphrey Bogart se deu bem no set, Nelson se deu bem na cabine. “Jamais cochilei em projeção. Fui pegando tanta prática que, independentemente dos projetores que me dessem, punha a fita no lugar certo só guiado pelas engrenagens, não precisava ficar olhando o quadro, checando numerinhos, nada. Fazia passagem de uma máquina pra outra no pé”.

O primeiro emprego em São Paulo foi no cine Paulista, da Rua Augusta, nos anos 60. Lá, fizeram-lhe uma maldade. Operadores veteranos largavam tudo nas costas do novato. Daí o Nelson começou a caprichar na cabine. Limpou as lentes. Passou Kaol nas peças. Poliu espelhos refletores. Resultado: a projeção ficou uma beleza, o público comentava, o dono da sala passou a elogiar o novo funcionário. Pois os operadores, enciumados, resolveram sacanear o colega deixando queimar os carvões de propósito. Apagão na tela. “Fui demitido, mas perdoei o pessoal”, diz o Nelson, que tem uma ligação com o espiritismo.

DANÇANDO NA CABINE
Novo teste, contrato prometido nos cines Can-Can e Moulin Rouge, mas eis que o chamaram para substituir Fausto, operador do Bijou, que saía em férias. E foi assim que, em 1971, Nelson entraria na cabine que mais amou na vida, amor de 25 anos de convívio e uma saudade perene. “Não me casei. Os amigos falam ‘Nelson, você precisa de uma mulher’, mas fui me acostumando à solteirice e me doei para o cinema. No tempo do Bijou, se tive dois Natais foi muito. Eram cinco sessões diárias, a primeira às 14 horas, a última à meia-noite. Dizem que operador é o peão do cinema, mas prefiro pensar que é o artista escondido".

Francisco, o segundo dono do Bijou, manteve a programação classe A numa época fecunda do cinema estrangeiro, particularmente do europeu. Pode-se dizer que o cineminha da Roosevelt deu mais espaço para as produções de fora do que para a nacional, no tempo em que pontificavam por aqui nomes como Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Cacá Diegues, Arnaldo Jabor - “e Nelson Pereira dos Santos, como ele é bom”, agrega o xará, seguro de suas predileções. Mais tarde, Francisco resolveu fazer uma segunda salinha ao lado, com 116 lugares, que chamou de Bijou-Sérgio Cardoso. Levou para a cabine a “philipinha”, versão menor da “philipona”. Quer dizer, Nelson passou a comandar dois projetores Phillips, um em cada cinema, num corre-corre danado. Quando ficava sem ajudante, pedia ao Dimas, porteiro do Bijou, para controlar o carvão numa sala, enquanto corria para a outra, dando início à projeção. Ficava de lá para cá, mas não tirava o olho das telas. Nem desgrudava da história. Em Amarcord, clássico de Fellini, permitia-se dançar na cabine ao som da trilha insuperável de Nino Rota. “Pensavam que eu era louco ou bichona”, diverte-se. Lembra de minúcias de O Ovo da Serpente, filme que flagra, numa Berlim arrasada pela 1ª Guerra, a gênese do nazismo: “Há uma cena... o sujeito leva o charuto à boca calmamente, solta a baforada e dá uma risadinha. Aí tem Bergman!” As reminiscências brotam. “E aquela cena do sujeito na bicicleta, no Lacombe Lucien, do Louis Malle?” Ou então: “Sabe o que é filmar uma árvore, o vento batendo nela e fazer com que entendam que você está tratando da memória? É o Bergman em Morangos Silvestres”.

Era um filmaço atrás do outro, público não faltava - formavam-se filas na rua, gente esperando pela próxima sessão - e os censores da ditadura poucas vezes criaram caso, apesar de a programação do Bijou turbinar o espírito de contestação da rapaziada. Os arapongas chiaram mesmo foi para dar alvará ao filme Mimi, o Metalúrgico, de Lina Wertmüller. Esse negócio de metalúrgico, greve, protesto ainda iria render no Brasil.

Trancado numa cabine e sem tempo para viver outra coisa, Nelson procurou a bebida. Foi fundo. “Cheguei a ser internado para me desintoxicar”, confessa. Pois foi a possibilidade de perder o Bijou que o salvou do alcoolismo. Uma noite, na solidão da cabine, conseguiu dizer ao maço de Arizona que levava no bolso da camisa: “Não vou mais te fumar”. Parou com tudo. Mas o centro da cidade, não. Continuou a se degradar. Grandes cinemas cederam aos filmes pornôs, outros fecharam portas ou viraram igrejas evangélicas. O restaurante, a doceira e o cabeleireiro se foram. Universitários da USP ganharam o câmpus distante. Gente fina mudou de itinerário, moradores de rua chegaram nos becos, o público sumiu. Salas de exibição nasciam nos shoppings e as casas ganhavam videocassetes, DVD players. Ah, a geração downloading não vai entender jamais como era bom se abrigar no Bijou, em plena tarde, e sair de lá outra pessoa.

Os anos 90 foram duros pro Nelson. Ele não aprovou quando o cinema teve que dividir as salas com grupos de teatro que passariam a arrendar o espaço, lá permanecendo. “Cheguei a fazer projeção para cinco pessoas, uma tristeza... Seu Francisco me dizia ‘Nelson, desiste, não tem mais aqueles filmes, os tempos são outros’. Duvidei. Se o cinema do shopping era bonito, a gente tinha que melhorar o Bijou. Aposto que o público voltaria!”.

Última tomada! Hoje, Nelson é um sem-cinema. Desempregado, dribla problemas de saúde decorrentes dos anos de cabine. Incomoda-o a maldita hérnia. Tenta viver com R$ 700 por mês, morando num fundo de casa do ex-patrão. Luxo, só um: economizou até comprar um aparelho de DVD e iniciar sua coleção de filmes. Tem 142. Vive para rever. A médica do INSS disse-lhe outro dia: “Seu Nelson, o senhor não tem nada”. Ele respondeu: “Aparentemente”.

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BIBLIOGRAFIA DO SITE

PRINCIPAIS FONTES DE PESQUISA

1. Arquivos institucionais e privados

Bibliotecas da Cinemateca Brasileira, FAAP - Fundação Armando Alvares Penteado e Faculdade de Arquitetura e Urbanismo - Mackenzie.

2. Principais publicações

Acervo digital dos jornais Correio de São Paulo, Correio Paulistano, O Estado de S.Paulo e Folha de S.Paulo.

Acervo digital dos periódicos A Cigarra, Cine-Reporter e Cinearte.

Site Arquivo Histórico de São Paulo - Inventário dos Espaços de Sociabilidade Cinematográfica na Cidade de São Paulo: 1895-1929, de José Inácio de Melo Souza.

Periódico Acrópole (1938 a 1971)

Livro Salões, Circos e Cinemas de São Paulo, de Vicente de Paula Araújo - Ed. Perspectiva - 1981

Livro Salas de Cinema em São Paulo, de Inimá Simões - PW/Secretaria Municipal de Cultura/Secretaria de Estado da Cultura - 1990

Site Novo Milênio, de Santos - SP
www.novomilenio.inf.br/santos

FONTES DE IMAGEM

Periódico Acrópole - Fotógrafos: José Moscardi, Leon Liberman, P. C. Scheier e Zanella.

Fotos exclusivas com publicação autorizada no site dos acervos particulares de Joel La Laina Sene, Caio Quintino,
Luiz Carlos Pereira da Silva e Ivany Cury.

PRINCIPAIS COLABORADORES

Luiz Carlos Pereira da Silva e João Luiz Vieira.

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